Notícias da Rita

Curvados em redor da tigela ou da panela, ali estão eles… Podem ser dois, três, seis, oito, dez…
Poucos com colher, a maioria com as mãos. O arroz enche a travessa, no meio alguma verdura, peixe, ou se tiverem sorte, carne. Tudo regado pelo obrigatório “mafé”, molho… Homens, mulheres, crianças... cada um na sua tigela. Ou se for só uma, cada um na sua vez… muitas vezes por esta ordem.
 
A maioria de vocês diria: “Que falta de higiene!”. Outros talvez lhe chamassem “cultura”. Um padre brasileiro viu nesta refeição comum uma imagem da Eucaristia. A mim impressiona-me o valor da partilha. Qualquer pessoa que passe por outros que estejam a comer vai com certeza ouvir: “Bim no cumi!”. Vem comer connosco! Podem nunca o ter visto antes, nem sequer saber o seu nome, mas o convite é certo. Vem! Vem sentar-te aqui connosco, partilhar do nosso prato, da nossa vida…
Vem tomar parte connosco, no pouco que temos. Sem vergonha nem mascaras, sem esconder a sua pobreza, mas com a alegria e a simplicidade de quem dá o pouco que tem.
Impressionante, não é?

Em Portugal não se fala de outra coisa senão da crise, dos problemas, das dificuldades financeiras. Cada um de vocês é bombardeado constantemente por este “monstro” que parece crescer de dia para dia, ao ponto de levar tantos ao desespero.
No meio disto alguns homens e mulheres decidiram abrir o coração e as mãos a um outro país.
Alguns reuniram-se e pensaram, alguns construíram e desenharam, alguns dobraram e cortaram, alguns compraram e têm em casa aquele pequeno mealheiro onde o menino de olhos grandes nos lembra que para lá das nossas fronteiras, das nossas prisões e dificuldades há outros, muitos outros, que não têm medo de partilhar o pouco que têm para conseguirem chegar juntos ao dia de amanhã.
É o mistério e o milagre da partilha que multiplica em dons, graças e alegrias tudo o que pomos ao serviço dos nossos queridos irmãos.
 
Iniciamos este mês de Outubro, mês das Missões, pelas mãos da pequena grande Teresinha, padroeira das missões juntamente com São Francisco Xavier. É às suas orações que confio cada um de vós, queridos amigos, que mesmo sem chegar a pisar África se tornaram missionários, pela oração, pelo empenho e disponibilidade.
 
Rita Carvalho
Jornal Cruz Alta (Outubro)
 
 

Mensagem para o Jantar+Teatro (29 de Setembro)

No ano 2012 a UPS arranjou espaço entre todas as actividades e preocupações e acolheu a GB. O “U” das mãos dadas por uma causa, segura no colo um pequeno “G”; Assim também a nossa Unidade se uniu, juntou as mãos, cabeças e corações para poder abraçar esta Guiné pequenina em tamanho mas tão grande no coração.
O “P” inclina-se e acolhe a mãe com o “B” às costas; Podia olhar para o ar e sonhar com coisas grandes; podia olhar para o seu umbigo e ficar atormentado com a crise em que está mergulhado; podia olhar de longe para o sofrimento de outros e lamentar-se sem nada fazer. Mas inclina-se de peito aberto para acolher aquela missão que o Senhor lhe pôs no caminho. Não para parecer bem, não porque é sua obrigação, mas porque ama, mesmo sem conhecer… Põe mãos à obra, envolve-se, abraça. Assim também seja a nossa Pastoral, envolvida com o mundo, com os pequenos que nos estão próximos mas também com os que estão mais longe. Porque todos somos filhos do mesmo Pai a caminho do mesmo abraço!
O “S” ajoelha-se, aos pés da Cruz, entregando os sofrimentos e alegrias do mundo. Porque às tantas percebemos que por mais que juntemos as mãos e que abracemos, certas coisas são mesmo maiores que nós e as nossas possibilidades. Como Maria, também nos resta apenas ajoelhar aos pés da cruz e entregar nas mãos do seu Filho os frutos do nosso esforço e trabalho.
Por isso hoje aqui estão vocês, U’s, P’s e S’s, a comer uma “bianda sabi”, simples, bem ao jeito da Guiné! Só queria deixar o meu muito obrigado, em nome de todo este povo acolhido no meio dos vossos corações!

Rita
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Porque é que corres tanto?

Onde é que vais, com tanta pressa? Onde queres chegar?
Saltas da cama e corres para o comboio ou para o carro… Aceleras para ganhar o tempo perdido.
Corres para acabar o trabalho que era para ontem.
Hora do almoço, engoles a correr. Ai, os miúdos!
Corres para a escola, beijo a correr, banho, jantar e cama… Corres para a cama. Já perdeste horas de sono…
“Perdes”, “ganhas”, “arranjas”, “usas”, “não tens” tempo…
Mas alguma vez o tiveste? Ou foi ele quem te teve, quem te possuiu, este tempo todo… Esse maldito, o tempo, que nunca é bom. Ou vai depressa ou passa devagar… “Um ano é tanto!” ou “Um ano não chega para nada…”
O tempo. É ele quem te faz correr? “O tempo não chega”, reclamas… Mas enganas-te. Porque ele chega. Chega sempre, como a noite chega no fim do dia… E quando chegar, vais reparar que afinal correste tanto para chegar exactamente onde começaste. Exactamente onde todos os outros chegam: os que correm, os que andam, os que passeiam… A única diferença é que eles, provavelmente, aproveitaram melhor o seu caminho. Porque repararam naquele pormenor, que fez toda a diferença, naquele detalhe que o Senhor preparou com carinho para ti… Não viste?
Que pena…
Então olha com atenção. Ali vão eles, com o seu ritmo lento, meio arrastado. Os braços doridos do trabalho, as costas carregadas, as pernas pesadas… Sentam-se na varanda, no djumbai. Não têm pressa, não têm horas… Não são “tidos” pelo tempo. A cozinha montada na rua, a panela pesada sobre o lume, onde se prepara o arroz para vinte… Lá vai o branco, a correr. Mas porque é que corre tanto? Vai à feira, vai comprar pão ou vai à escola… “Branco! Branco! N’gosta di bo!” Ouviste? Eu gosto de ti!
Chega à escola, cansada de tanto correr. As mulheres ali estão, na varanda, no djumbai. Uma corta cebola, outras só conversam… Logo uma se levanta para me dar o seu lugar. Àquela morreu o filho.
Ainda ontem ali estava o bebé, meio atordoado, nas suas costas. Nessa mesma tarde morreu. Estas a ver? O tempo chegou para ele, sem que tu possas alguma vez compreender porquê… A conversa continua com o tom de sempre. Olhas o relógio, já está na hora e o Bondá não chega. Finalmente lá vem ele, atrasado como sempre, para começarmos o curso de alfabetização de mulheres. Escreves no quadro… Uma hora só para elas passarem as palavras simples. A mão lenta tenta com dificuldade desenhar a letra bonita. Começa a escurecer... Vem aí chuva. E o caminho para casa é uma meia hora a pé… Desaba a tempestade, as chapas de zinco que cobrem a casa quase que vão também com o vento forte. Raios, trovões, chuva… Não se consegue andar, mas elas têm que ir. A roupa esta estendida! Lá vão, saco de plástico e bidon na cabeça, entre gargalhadas, enfrentando a tempestade. Eu espero que acalme… O Bondá, preocupado, pede à vizinha um saco para eu não molhar o cabelo. Ela, com generosidade, oferece uma touca do banho, com florezinhas e tudo! Não posso negar… No meio de risadas lá ponho a touca e o Bondá ri comigo! Parece que acalmou, vamos lá… Ele vai por ali, eu por aqui. Sorrio da minha figura… Com alguma distância lá tiro a touca, depois de muitos olhares e sorrisos! Desta vez já não corro… Os chinelos escorregam e obrigam a passos lentos. As pernas já não são mais brancas, mas castanhas…
“Oh Rita!” grita o Emiliano do outro lado da rua, separados pelo mar de lama que a chuva torrencial trouxe. Sorrio, encharcada, e sinto-me tão viva!

Porque é que corres tanto?
Não vês que também tu vais com uma touca de flores na cabeça quando andas nesse corre-corre?
O tempo sorri-te da tua figura…
Sorri-lhe tu também!

Rita Carvalho
Jornal Cruz Alta (Agosto/Setembro)



Fé ku Esperança, Paz ku Amor

Assim os chamámos no final de mais um encontro de vocacionados…
Cheguei a casa cansada mas tão feliz por este dia! Começou da melhor maneira no silêncio da nossa capela, só Tu e eu… Tu em silêncio, eu a matraquear… as minhas preocupações, planos, ideias… como sempre. De repente calaste-me. És tão simples… e eu tão complicada! Lembrei-me daquela rapariga que dizia que Deus é como o UZO: descomplicado! “Simples”. Gravaste esta palavra no meu coração esta manhã. Olhei para aquele sacrário onde estavas e pensei “sim, tão simples”. Enquanto caminhava para ir ao Teu encontro, na catedral, repetia “tão simples…”.
Depois a Tua Palavra explicava como tinhas vindo simplificar aqueles complicados antigos rituais. Uma nova e eterna aliança, simples, de uma vez para sempre. Não mais sacrifícios, um só Cordeiro… Deste-Te todo, até ao fim, sem complicações nem clausulas. Entregaste-Te todo, simplesmente, por nós. Depois confirmei… Tu, meu maior bem e aspiração, tão alto, tão imenso e glorioso, vieste até mim aqui, neste pão tão torto, tão frágil… tão simples.
Hoje foi dia do Corpo de Cristo aqui na Guiné-Bissau, que por si só já “enche as medidas”! Mas foi também dia do acólito. Olhar para aqueles vinte jovens de branco comoveu-me. Também aqui me falaste da doçura das coisas simples… Porque servir-Te no altar é revestir-se dessa Tua simplicidade. É fazer-se boa lanterna, que em si mesma nada tem de bom, mas que é eficaz quando ajuda a entender melhor a realidade que ilumina. É fazer-se pequenino, como aquele jumentinho, que nada valendo teve a graça de Te levar na entrada em Jerusalém… não porque era bom, pobre jumento, mas porque “o Senhor precisa dele”!
No final da tarde tivemos o habitual encontro do grupo de vocacionados, a maioria deles também acólitos. Estavam a festejar o seu dia, com a simplicidade que aqui é habitual: uma panela de arroz, molho, dois ou três peixes… Tudo junto na travessa e dá sempre para mais um Para completar não pode faltar a música! Voltando ao encontro dos vocacionados, o Pe. Admir não podia vir, a Irmã Zenaida também não estava e eu, sem saber bem o que fazer nem ter nada preparado, já ia voltar para casa… Mas eles queriam ter encontro! Lá nos sentámos debaixo da palhota… Olhei para aqueles quatro rapazes, tão simples e tão especiais. “Hoje são vocês que fazem o encontro…” passei a batata-quente, é verdade! Depois de reclamarem um bocadinho, lá começámos, invocando o Espírito Santo. Um por um o Maio, o Leopoldo, o Djata e o Duarte deram o seu testemunho. São os quatro jovens do nosso grupo, candidatos a entrar no seminário no próximo ano. O Maio contou com alegria como lhe tinha ardido o coração pela primeira vez ao participar na ordenação do Pe Avito, dois anos atrás; o Leopoldo continuou a deixar o seu constante pedido “rezem por mim”, confiante de que as orações que temos feito por ele ajudaram que o seu pai, inicialmente contra, acabasse por aceitar a sua entrada no seminário; o Djata mostrou a sua perseverança, mesmo quando o ano passado, tendo tudo pronto para entrar no seminário, lhe foi pedido que esperasse mais um ano; o Duarte partilhou as suas enormes dificuldades com a família, que lhe negou todo o apoio até àquela conversa com a sua mãe, inconsolável, que por fim compreendeu a profundidade do chamamento do seu filho… Os quatro deixaram ao resto do grupo palavras de esperança e encorajamento para esperarem, com paciência, a “hora do Senhor”, que chega para todos… Emocionados, todos quiseram fazer perguntas, desejar coragem, força, aconselhar a obediência, o empenho, pedir orações… Acima da natural tristeza por ainda não ter chegado a sua vez, todos mostraram grande alegria e orgulho por aqueles quatro! Por fim tentei falar, mas ainda não lhes consigo explicar em crioulo aquilo que vai cá dentro, numa linguagem sem língua, porque nem em português vos consigo explicar. Peço-vos só que rezem, como eu hei-de rezar sempre, por estes e todos os jovens que procuram com todas as suas forças descobrir o seu lugar, aquele onde o nosso Jesus os sonhou, os deseja ardentemente e os espera. Rezemos especialmente por estes quatro, “Fé e Esperança, Paz e Amor”, para que sejam sempre tão simples como são hoje…

Rita Carvalho
Jornal Cruz Alta (Julho)